Ministérios esvaziados, direitos de indígenas mutilados e penhora da gestão dos recursos hídricos impõem série de derrotas ao governo


A vitória do antiambientalismo

Burning forest fire destroys natural environment outdoors generated by artificial intelligence

Uma luta entre forças anti e pró ambientalistas na Praça dos Três Poderes de Brasília marcou a semana que antecedeu ao Dia do Meio Ambiente (5 de junho), deixando claro que falta ao Brasil um entendimento da dimensão da economia verde e o papel que o País quer ocupar neste novo modelo. Ao aprovar o marco temporal da demarcação de terras indígenas a 1988 e reduzir as atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e Povos Originários, o Congresso Nacional usou a agenda como retaliação política imprimindo derrotas a uma das mais caras agendas do governo Lula. Em sua miopia pelo poder, porém, deixou de olhar com racionalidade o lado econômico da história. Segundo levantamento da Oxford Economics, consultoria independente lançada em 1981 pela faculdade de administração da Universidade de Oxford, a economia verde pode valer US$ 10,3 trilhões até 2050 — mais de seis vezes o PIB brasileiro.

Não olhar com racionalidade a questão pode custar caro. Para o mundo, o enfraquecimento das políticas ambientais brasileiras pode colocar em xeque a luta contra a mudança climática, já que abre as porteiras para o aumento do desmatamento da Amazônia — que de agosto de 2022 e abril de 2023 perdeu 5.936 km², o maior valor da série histórica para esse período. Para o Brasil, os prejuízos viriam não só pela dificuldade de acessar recursos vinculados à sustentabilidade, como pela possível perda de ‘dinheiros’ que já estão na mesa. Na opinião de Raul do Valle, diretor de Políticas Públicas do WWF-Brasil, a decisão da Câmara dos Deputados, sob comando de Arthur Lira, de colocar obstáculos para que o executivo cumpra seu papel de implementar políticas ambientais pode levar à perda de relevância do Brasil nos acordos internacionais. “Estamos colocando em risco a viabilidade da entrada do Brasil na OCDE e a de finalização de acordos comerciais do Brasil com a União Europeia”, afirmou. Recente decisão do bloco europeu de fechar a porta para importação de produtos de áreas desmatadas após dezembro de 2020, pode interromper as exportações de commodities agrícolas como soja, café e madeira brasileiros para a região, justamente os três produtos com maior participação na balança comercial bilateral com participação de 8,8%; 6,4% e 6%, respectivamente.

Elencados alguns reflexos mais palpáveis dessa polarização e esquizofrenia ambiental que Brasília vive, há também a questão reputacional. Para Fabio Alperowitch especialista em investimentos ESG e sócio da Fama Investimentos, a aprovação da Medida Provisória que provoca o esvaziamento das atribuições dos ministérios do Meio Ambiente e Povos Originários (MP 1154/23) e do marco temporal de demarcação de terras indígenas (PL 490/07), além da dispensa da licença ambiental para construção de gasodutos na Mata Atlântica são um duro golpe na imagem de ambientalista que o governo pretendia construir. “É profundamente lamentável ver que estes movimentos não estejam circunscritos à oposição, mas também de membros alinhados ao governo”, disse.

Acompanha a opinião de Alperowitch, Beto Mesquita, membro da Coalizão Brasil Clima. Em sua análise, o sinal dado por Brasília à comunidade internacional é de instabilidade institucional e insegurança jurídica. A consequência virá à galopada e justamente para uma das bancadas mais antiambientalistas do legislativo: a do agronegócio. “Decisões como a de levar o Cadastro Ambiental Rural (CRA) para o Ministério da Gestão pode paralisar a regularização ambiental da agricultura, e se tornar um tiro no pé do produtor”, afirmou. Para o especialista, o setor produtivo profissional sairá perdendo. “As consequências serão ruins para empresários sérios, os únicos que ganharão serão os criminosos ambientais e os competidores do agro nacional”.

Enquanto a batalha política na agenda macro segue em Brasília, mais um Dia do Meio Ambiente chega escancarando que o País ainda enfrenta problemas basilares como saneamento básico, acesso à água e gestão de resíduos. E outros estruturantes como transição energética e mercado de carbono. No vácuo deixado pelo governo, é a iniciativa privada que vem olhando de maneira mais construtiva para esses temas.

SANEAMENTO

Para um governo que tem como bandeira políticas sociais e ambientais, as alterações propostas pelo Planalto ao Marco do Saneamento surpreenderam o mercado. Entre as mudanças estão novas regras que permitem empresas estatais prestarem serviços sem licitação, e alteração do texto que previa que as companhias responsáveis pelos atuais contratos deveriam comprovar capacidade econômico-financeira para seguir com as atividades. Essa insegurança jurídica, afirma Maurício Russomanno, CEO da Unipar, “pode comprometer os investimentos no setor e a meta do Brasil de garantir atendimento de 99% da população com água potável e de 90%, com tratamento de esgotos até 2033”. Hoje, 44,2% da população brasileira não têm acesso à coleta de esgoto e cerca de 15% não é abastecida com água potável. A empresa, porém, segue firme no seu plano individual de investimento com R$ 100 milhões aplicados na fábrica de Santo André (SP) e outros R$ 250 milhões na unidade de Camaçari (BA) — ambas produtoras de insumos para a indústria de saneamento. “Vamos continuar investindo, mas lógico que à medida que os projetos e contratos escorreguem ao longo dos anos, vamos modulando o momento de aplicar novos recursos”.

Junto ao saneamento, o governo ainda enfrenta a questão da água. Para o diretor em Políticas Públicas do WWF-Brasil, Raul do Vale, ao aceitar o texto que retira a responsabilidade da gestão hídrica do Ministério do Meio Ambiente (MMA) para colocá-la sob a pasta do Desenvolvimento Regional (com a MP 1154/23), o governo entrega a segurança dos ovos à raposa. “Os recursos hídricos interessam a diversos setores — agricultura, indústria, energia —, por isso é tão importante um árbitro isento para definir as políticas setoriais, e ele seria o MMA”, afirmou. Na nova dinâmica, a água pode ser uma moeda de troca. “É uma situação absurda”, disse. Para o professor Gesner Oliveira, ex-presidente da Sabesp, água e esgoto deveriam ser tratados como uma agenda única. “O saneamento precisa entrar na era da economia circular sem uma cisão entre um e outro, ambos são água com diferentes características”. Segundo o executivo, tecnologias para transformar o esgoto em água reutilizável já existem no Brasil e podem reduzir drasticamente as perdas de 40% registradas nas companhias de abastecimento. “A reciclagem da água precisa entrar na pauta das políticas públicas”

RESÍDUOS

Prova de que quando querem o Executivo e o Legislativo conseguem consenso é a Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Instituída em agosto de 2010, ela trouxe ao País uma série de inovações para a gestão e gerenciamento do que antes era tratado como lixo. Para Guilherme Brammer, head de Economia Circular da Ambipar, a legislação trouxe progressos consideráveis. “Conseguimos avançar em logística reversa e engajar empresas em acordos setoriais robustos”, afirmou. Um dos exemplos mais contundentes é o de latas de alumínio. Dados da Recicla Latas, obtidos com o apoio da Associação Brasileira do Alumínio (Abal) e da Associação Brasileira dos Fabricantes de Latas de Alumínio (Abralatas), indicam que no ano passado os recicladores processaram 390,2 mil toneladas de sucata de latinhas, montante equivalente as 31,85 bilhões de unidades comercializadas pelos fabricantes de latas em 2022. Um aproveitamento de 100%.

Os problemas no Brasil, porém, ainda são bastante significativos. Segundo dados da International Solid Waste Association (ISWA), somente 4% dos materiais recicláveis são processados no Brasil. Um dos grandes obstáculos para Brammer, da Ambipar, é o tratamento tributário dado aos materiais reciclados que é o mesmo do material virgem. Outro é a falta de infraestrutura. “Poucas cidades brasileiras possuem a coleta seletiva o que torna a implementação da PNRS bastante complexa em sua total amplitude”, afirmou. Algumas regiões e empresas têm resolvido essa ausência da autoridade pública com investimentos em cooperativas de catadores e recicladores. “Eles representam 90% da coleta de resíduos do País”. Mas, mesmo com o avanço na organização da economia circular, há mais dois agentes que desafiam a gestão de resíduos. O primeiro a indústria. “Enquanto os executivos forem cobrados e remunerados por resultados de uma economia linear, será muito difícil dar escala à reciclagem”, disse Brammer. O outro é o consumidor. “Precisamos que a agenda ambiental entre na grade curricular das crianças, só por meio da educação teremos a transformação necessária.”

ENERGIA

Entre tanto caos gerado por atividades humanas, a natureza deu ao Brasil uma vantagem competitiva: água, sol e ar suficiente para a viabilização de uma das matrizes elétricas mais limpas do mundo, com cerca de 90% de fonte renovável. Mas a alegria dura pouco. Segundo o estudo “Programa de Transição Energética”, publicado pelo Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e o Centro de Economia Energética e Ambiental (Cenergia) a transição energética brasileira enfrentará obstáculos que não estão no centro de políticas públicas. Entre eles, a tendência de crescimento na demanda por energia; a necessidade de atualizar e até criar marcos regulatórios; e o fato de novas tecnologias e infraestrutura ainda demandarem desenvolvimento, escala e competitividade.

Diante da leniência institucional, cabe a um coletivo setorial pressionar por avanços. Muitos dos pontos citados pelo estudo já estão sendo tratados pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica (CCEE), presidida por Rui Altieri. De acordo com a entidade, o consumo de energia elétrica no Brasil para o quinquênio 2023-2027 deve crescer a taxas anuais de 3,2%, atingindo 81.540 MW médios. Diante do cenário, a preocupação de Altieri é com os investimentos necessários. “Para acelerar o processo de transição energética devíamos olhar para o Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (Proinfa), que em 2002 beneficiou a produção de biomassa e de Pequenas Centrais Hidrelétricas”, disse. Nesta reedição, porém, o foco, para o presidente da entidade, deveria estar no aumento da competitividade do hidrogênio verde, combustível sustentável que, segundo a CCEE, deve ser o combustível do futuro. O caminho, porém, esbarra nas regulamentações. “Esse é um problema não só do Brasil, mas do mundo.”

CARBONO

Avançar na transição energética será fundamental para a descarbonização do planeta, que por sua vez é imprescindível para que a temperatura global fique abaixo de 2ºC acima dos níveis industriais, conforme estabeleceu o Acordo de Paris (2015). No Brasil, a energia representa cerca de 18% das emissões de gases de efeito estufa (GEE). A parte majoritária, contudo, vem do uso da terra e da atividade agropecuária que juntas participam com 73,84%. Para que a descarbonização seja possível, entidades como o Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) batalham pela regulamentação do mercado de carbono brasileiro o que transformaria a proteção ambiental em uma linha de receita e não de despesa para os produtores rurais. Como Marina Grossi, presidente da entidade costuma dizer, “o carbono pode ser a nova commodity brasileira”.

Meio caminho já está andado. No País funciona o mercado voluntário de carbono no qual empresas estabelecem suas metas de emissão e compensação ou sequestro de carbono e transacionam os créditos no mercado. Em maio do ano passado, o governo Jair Bolsonaro promulgou um decreto que estipulava a criação do modelo compulsório, mas o documento deve ser revogado pela atual administração. Para Breno Rates, diretor de Projetos de Carbono do WayCarbon, o que parece um retrocesso, pode ser um passo à frente já que com isso ganha força o Projeto de Lei 528 que é interessante porque separa o que é o mercado regulado do voluntário. “O PL é mais robusto e reconhece as complementaridades dos dois mercados.” Para Rates, o mercado voluntário tem, por exemplo, a vantagem de impulsionar a orientação do Science Based Target de que as empresas precisam incentivar reduções de emissão fora de suas cadeias de valor. “Só assim conseguiremos manter a temperatura global nos termos do definido no Acordo de Paris.”

O que falta, como nos demais tópicos da agenda, é o consenso político.

Este texto trata majoritariamente pelas ODS

Originalmente publicado na ed 1327 da revista IstoÉ Dinheiro, quando eu respondia pelo cargo de editora de ESG.

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